Quem tem o direito de executar os montantes cobrados a título de
astreintes, a multa imposta para forçar o cumprimento de uma obrigação
determinada judicialmente: o estado ou o credor? A questão começou a ser
tratada pela Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) em dois
processos. O relator de ambos, ministro Luis Felipe Salomão, propôs
mudança na jurisprudência sobre o tema. Ele defende a divisão da multa
entre o ente estatal e o credor. O julgamento foi interrompido por
pedido de vista do ministro Marco Buzzi.
Nos dois casos, instituições financeiras mantiveram o nome de
particulares em cadastro de devedores, mesmo após o débito ter sido
quitado. No primeiro processo, o Banco do Brasil se insurgiu contra o
valor da multa cominatória, alegando que este se tornou “exagerado e não
condizente com a finalidade das astreintes”. Pediu a redução a valores
razoáveis.
Já no segundo processo, a ação de execução das astreintes, movida
pelo particular prejudicado contra a Caixa Econômica Federal (CEF), foi
extinta pelo juízo da 5ª Vara Federal de Curitiba (PR). Entendeu-se que o
prejudicado não seria parte legítima para propor a execução, mas sim o
ente estatal – no caso, a União.
O ministro Luis Felipe Salomão apontou que o objetivo desse instituto
legal, previsto no artigo 461 do Código de Processo Civil (CPC), é
coagir a parte ao cumprimento da obrigação. “Nesse passo, a multa não se
revela como um bem jurídico em si mesmo perseguido pelo autor, ao lado
da tutela específica a que faz jus. Revela-se sim como valioso
instrumento para consecução do bem jurídico”, apontou.
Entretanto, observou o ministro, a legislação brasileira tem lacunas
sobre o tema. Há dúvidas na doutrina quanto ao início da incidência das
astreintes; sobre quando a multa pode ser executada; se pode ser
executada provisoriamente, entre outras. Ele declarou que a
jurisprudência do STJ tem dado resposta há várias dessas obscuridades.
“Porém, outras questões continuam em aberto, sem uma abordagem profunda,
como é exatamente o caso da titularidade do crédito”, apontou.
Função da astreinte
Haveria, na visão do ministro Salomão, dois valores a serem
ponderados na imposição dessa multa. O primeiro é a efetividade da
tutela jurisdicional e o segundo é a vedação ao enriquecimento sem causa
do beneficiário. Para ele, a indefinição legal esvazia o instrumento,
pois muitas vezes os valores do devedor recalcitrante são suavizados e
diminuídos para patamares muito inferiores.
Por outro lado, o relator destaca que às vezes o credor também fica
inerte e, propositalmente, demora a regularizar a situação para ver o
valor da astreinte crescer. Para Salomão, isso “fomenta de modo evidente
o nascimento de uma nova disfunção processual, sobretudo no direito
privado; ombreando a chamada ‘indústria do dano moral’, vislumbra-se com
clareza uma nova ‘indústria das astreintes’”.
Direito comparado
Salomão afirmou que, de acordo com vários doutrinadores, a atual
destinação da astreinte exclusivamente para o credor, adotada pela
jurisprudência brasileira, é incapaz de superar as contradições entre os
valores da efetividade e da vedação ao enriquecimento ilícito. Ele
destacou, na doutrina, entendimento de que essa concessão para o credor
adotada no Brasil é mero “hábito inveterado, aceito confortável e
passivamente pela doutrina e jurisprudência”.
Na avaliação do relator, conceder o valor integral para o credor,
como no direito francês, geraria problemas como o enriquecimento sem
causa. Além disso, a astreinte ocorreria independentemente da vontade
das partes, independentemente de má-fé.
Por outro lado, ponderou o ministro Salomão, destinar todo o montante
para entes estatais, na forma prevista no direito alemão, geraria
outras distorções. Um exemplo seria quando o próprio estado reluta em
cumprir obrigações judiciais, tornando-o credor e devedor ao mesmo
tempo. Outra questão é que o estado muitas vezes demora a receber seus
créditos, o que diminui o efeito de coação desejado na astreinte.
O sistema português, que destina metade do dinheiro ao credor e a
outra metade ao ente estatal, seria o que mais se aproxima do
ordenamento jurídico brasileiro. Para o ministro Salomão, o artigo 461
do CPC deixa claro que a astreinte cobre tanto interesses públicos como
privados. Para ele, essa multa faz as vezes de sanção e ao mesmo tempo
tenta garantir que o credor receba o mais rápido possível.
O ministro afirmou que a indagação sobre se as astreintes possuem
natureza coercitiva ou punitiva não conduz necessariamente a uma
conclusão lógica acerca de sua titularidade. Segundo ele, é preciso
observar a natureza do crédito devido a título de multa, bem como os
valores e interesses protegidos por essa cobrança.
Com essa fundamentação, o ministro votou pela redução do valor das
multas em ambos os casos e pela destinação de metade do montante de cada
uma aos respectivos entes estatais e credores. No recurso do Banco do
Brasil, o relator reduziu a multa para R$ 100 mil, destinando 50% ao
estado do Rio Grande do Sul, unidade federativa à qual pertence o órgão
que prolatou a decisão não cumprida. No recurso da CEF, metade da
astreinte de R$ 5 mil deverá ir para a União, já que a ordem judicial
não cumprida partiu de juízo federal.
Até agora, o relator foi o único a dar seu voto, já que o ministro
Marco Buzzi pediu vista antecipada. Não há data prevista para a retomada
do julgamento.
Processos: REsp 949509; REsp 1006473
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