Cerca de um ano após sua instalação, em junho de 1990, os
ministros do Superior Tribunal de Justiça (STJ) já percebiam que a Corte
não poderia se tornar uma terceira instância. O recurso especial, uma
de suas principais atribuições, tem regras rígidas e, em respeito a
elas, o Tribunal logo editou a Súmula 7: “A pretensão de simples reexame
de prova não enseja recurso especial.” O enunciado passou a ser
largamente aplicado pelos ministros na análise de variadas causas,
impossibilitando o conhecimento do recurso – isto é, o julgamento do
mérito da questão.
No entanto, os magistrados observaram que há casos em que a
revaloração da prova ou de dados explicitamente admitidos e delineados
na decisão da qual se recorre não implica o reexame de fatos e provas,
proibido pela súmula. São diversos os recursos em que as partes
conseguiram demonstrar a desnecessidade de reanálise de fatos e provas
e, com isso, afastando a aplicação da Súmula 7.
Em precedente recente, julgado em dezembro do ano passado, a Quarta
Turma confirmou decisão individual do ministro Marco Buzzi que debateu a
revaloração da prova. No recurso, uma transportadora de São Paulo
conseguiu o reconhecimento da impossibilidade de uma seguradora
acioná-la regressivamente para o ressarcimento de prejuízos em
decorrência de roubo da carga (REsp 1.036.178).
A seguradora protestou contra a decisão, levando o caso à Turma.
Disse que haveria desobedecido a Súmula 7, porque o ministro teria
reexaminado a prova produzida nos autos. Entretanto, o ministro Buzzi
explicou que a decisão “apenas deu definição jurídica diversa aos fatos
expressamente mencionados no acórdão” do Tribunal de Justiça de São
Paulo.
O ministro esclareceu que o reexame de prova é uma “reincursão no
acervo fático probatório mediante a análise detalhada de documentos,
testemunhos, contratos, perícias, dentre outros”. Nestes casos, o
relator não pode examinar mera questão de fato ou alegação de error
facti in judicando (julgamento errôneo da prova).
Porém, o ministro acrescentou que o error in judicando (inclusive o
proveniente de equívoco na valoração das provas) e o error in procedendo
(erro no proceder, cometido pelo juiz) podem ser objeto de recurso
especial. “A revaloração da prova constitui em atribuir o devido valor
jurídico a fato incontroverso sobejamente reconhecido nas instâncias
ordinárias, prática francamente aceita em sede de recurso especial”,
ressaltou o ministro Buzzi.
Dados admitidos
Em 2005, a Quinta Turma reconheceu que a “revaloração da prova ou de
dados explicitamente admitidos e delineados no decisório recorrido não
implica o vedado reexame do material de conhecimento”. Porém, ao julgar o
recurso, os ministros decidiram aplicar a Súmula 7 ao caso. O ministro
Felix Fischer, atual vice-presidente do STJ, foi o relator (REsp
683.702).
Naquela hipótese, as instâncias ordinárias condenaram um
administrador por ter deixado de recolher contribuições previdenciárias
de uma empresa. Ele recorreu, pedindo a absolvição por presunção de
inocência, já que entendia não haver prova suficiente de que estaria à
frente da empresa à época do delito.
A Quinta Turma não conheceu do recurso, aplicando a Súmula 7. O
ministro Fischer constatou que o tribunal de segunda instância
reconheceu de forma cabal, por documentos e testemunhos, da mesma forma
que o juiz de primeiro de grau, que o administrador efetivamente, à
época dos fatos descritos na denúncia, figurava como sócio-gerente da
empresa.
Na ocasião, o ministro Fischer teceu algumas considerações acerca da
diferença entre reexame e revaloração de prova. Ele explicou que a
revaloração de elementos aceitos pelo acórdão do tribunal de origem é
questão jurídica e que não se pode negar às instâncias superiores a
faculdade de examinar se o direito à prova foi malferido ou se os juízes
negaram o direito que as partes têm de produzi-la. Isto é, “não é só em
consequência do erro de direito que pode haver má valoração da prova.
Ela pode decorrer também do arbítrio do magistrado ao negar-se a
admiti-la”.
Livre convencimento
Um dos precedentes que inauguraram a tese de revaloração da prova no
STJ é de 1998. A Quinta Turma, em recurso especial interposto pelo
assistente de acusação, restabeleceu a sentença que condenou um
motorista por homicídio culposo ao volante (REsp 184.156).
Testemunhas foram uníssonas ao afirmar que o veículo era conduzido em
alta velocidade. Porém, como duas perícias de universidades renomadas
foram divergentes quanto à velocidade, os desembargadores, por maioria,
adotaram a presunção de inocência para absolver o motorista no
julgamento de apelação.
O relator do recurso no STJ, ministro Felix Fischer, baseou-se no
amplo debate ocorrido na segunda instância, para concluir que não se
poderia negar a prova testemunhal (admitida e especificada em segundo
grau) em “proveito de especulações teóricas” para chegar a uma suposta
dúvida fundada, a ponto de absolver o réu.
O relator destacou em seu voto que o princípio do livre
convencimento, que exige fundamentação concreta vinculada à prova dos
autos, não se confunde com o princípio da convicção íntima. De acordo
com o ministro Fischer, a convicção pessoal, subjetiva, do magistrado,
alicerçada em outros aspectos que não a prova dos autos, não se presta
para basear uma decisão.
O princípio do livre convencimento, asseverou, não afastou o
magistrado do dever de decidir segundo os ditames do bom senso, da
lógica e da experiência. A apreciação da prova não pode ser “imotivável e
incontrolável”, do contrário seria arbitrária, explicou o ministro. E
sempre que tais limites se mostrem violados, a matéria é suscetível de
recurso ao STJ.
Prova já delineada
A Primeira Turma também já considerou possível a revaloração da prova
delineada nos autos. Num dos recursos que discutiu a tese, em 2006, o
então ministro do STJ Luiz Fux, atualmente no Supremo Tribunal Federal
(STF), baseou-se em passagens do voto-condutor do julgamento no Tribunal
de Justiça de São Paulo para atender a recurso interposto por uma
contribuinte (REsp 734.541).
O debate foi sobre a prescindibilidade ou não da existência de
sintomas de câncer para que uma servidora pública aposentada, que sofreu
extirpação da mama esquerda em decorrência da doença, em 1984,
continuasse isenta do Imposto de Renda.
O ministro Fux considerou possível revalorar a prova e restabelecer a
sentença, em que o perito afirma, sem possibilidade de qualquer dúvida,
que a autora é portadora da doença. Na decisão, a própria assistente
técnica do município de São Paulo (réu na ação) afirma que “existem
chances de cura, após o período preconizado de acompanhamento e
tratamento, caso não surjam recidivas e metástase, isto é, o paciente
pode ser considerado curado, desde que a doença não volte”.
De acordo com o ministro, a revaloração da prova delineada na decisão
recorrida, suficiente para a solução do caso, é, ao contrário do
reexame, permitida no recurso especial. No caso, o próprio acórdão do
TJSP, em algumas passagens, reconheceu que “a cura, em doenças com alto
grau de retorno, nunca é total”, e mais: “O que se pode dizer é que, no
momento, em face, de seu histórico pessoal, não apresenta ela sintomas
da doença.”
Valor de indenização
Em 2009, ao julgar um recurso, o então desembargador convocado Paulo
Furtado afirmou, na Terceira Turma, que o STJ havia alguns anos começava
a afastar o rigor da técnica do recurso especial para controlar o
montante arbitrado pela instância ordinária a título de dano moral (REsp
785.777).
O objetivo era impedir o estabelecimento de uma “indústria do dano
moral” Assim, destacava o magistrado, o STJ, em situações
especialíssimas, como a de arbitramento de valores por dano moral
ínfimos ou exorbitantes, se pronuncia nos casos concretos para aferir a
razoabilidade do valor destinado à amenização do abalo moral.
“Não se tem dúvida de que esta Corte, ao reexaminar o montante
arbitrado pelo tribunal a quo nesta situação, mergulha nas
particularidades soberanamente delineadas pela instância ordinária para
aferir a justiça da indenização (se ínfima, equitativa ou exorbitante),
afastando-se do rigor da técnica do recurso especial, consubstanciada,
na hipótese em tela, pela Súmula7/STJ”, observou o desembargador
convocado.
Posição semelhante adotou a Quarta Turma, em julgamento que tratou de
ação de reconhecimento de tempo de serviço ajuizadas contra o INSS. Os
ministros entenderam que não ofende o princípio da Súmula 7 emprestar,
no julgamento do recurso especial, significado diverso aos fatos
estabelecidos pelo acórdão da segunda instância (REsp 461.539).
O relator, ministro Hélio Quaglia Barbosa, esclareceu: “Inviável é
ter como ocorridos fatos cuja existência o acórdão negou ou negar fatos
que se tiveram como verificados.” De acordo com o ministro, o voto
proferido em recurso especial em momento algum negou os elementos
fáticos reconhecidos no acórdão do Tribunal Regional Federal da 5ª
Região (TRF5), apenas, com base neles, chegou a entendimento diverso,
restabelecendo decisão de primeiro grau.
Processos: REsp 1036178; REsp 683702; REsp 184156; REsp 734541; REsp 785777; REsp 461539
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